segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A peleumonia e o preconceito nosso de cada dia

Quando eu estava no colegial, uma professora do 7º ano pediu para os alunos das suas salas fazerem um trabalho que consistia em procurar e colar em um cartaz várias fotos de placas e anúncios com erros ortográficos e gramaticais. Lembro que eu, como todo mundo que olhava os cartazes, ri muito dos erros, até que um dia minha professora de literatura perguntou pra gente o que a nossa sala pensava daquelas placas nos trabalhos expostos e todo mundo deu risada enquanto dizia que quem escreveu aquelas placas só podia ser muito burro. A graça acabou quando um dos alunos citou o "concerta-se panela de preção" e a professora perguntou: "mas quem aqui nessa sala sabe consertar uma panela de pressão?". Óbvio que nenhum de nós, alunos de classe média em uma escola particular, sabíamos consertar uma panela. E nós também não sabíamos o quanto era ridícula a nossa atitude de rir de quem "não sabe escrever", e eu coloco em aspas porque o moço que "concerta panela de preção" sabe escrever, mas não na norma ortográfica. Nós não éramos e nem somos melhores que o cara que "concertava" panelas, nós só tivemos mais oportunidades. E foi isso que eu aprendi naquele dia, enquanto a professora falava e eu me lembrava da minha vó, que escreve "para béns", sabe fazer muito mais coisas que eu e sempre se lamenta de não ter tido oportunidade de estudar mais.
Uns anos depois eu entrei na faculdade de Letras e uma das primeiras aulas foi sobre preconceito linguístico, que é o nome que se dá pra essa “doença” que as pessoas têm de achar que aquele que sabe escrever tem o direito de ridicularizar e sentir-se superior àquele que não sabe. Esse preconceito é tão grande no Brasil que até mesmo um homem que chegou à presidência foi mais lembrado pelos erros gramaticais do que por sua trajetória. É só olharmos os comentários ao ex-presidente Lula em comparação a Fernando Henrique Cardoso: o primeiro, um ex-operário "que fala tudo errado" e o segundo, um exemplo de pessoa bem educada, português impecável, “fala até inglês”. Mesmo que Lula representasse o modo de falar da maioria da população, as críticas ao seu governo sempre focavam no seu modo de falar como se isso, automaticamente, o tornasse o pior presidente de todos, independentemente dos seus projetos e ações. O maior pecado de Lula, para os "mestres das gramática", é ser "menos culto" por "não falar direito".

Desse jeito preconceituoso, que insiste em nos dividir em quem "sabe falar português" e "quem não sabe"  - e que ajuda a perpetuar a ideia de que "língua portuguesa é muito complicada" -, é fácil pra um formado em medicina rir de um homem que só estudou até o fundamental, é fácil ridicularizar alguém porque ela escreve ou fala fora da norma, difícil é exercer a profissão daquela pessoa, difícil é conhecer a sua história, difícil é ser o que o outro é, sentir o que o outro sente. Eu tenho certeza que o médico que escreve "pneumonia" não sabe consertar um carro como seu paciente que é mecânico, e também não deve saber fazer os pãezinhos de queijo da minha vó, assim como ninguém da minha sala do ensino médio sabe consertar uma panela de pressão. Porque cada um teve uma oportunidade e se especializou naquilo que pôde, e é cada um de jeito, com seu jeito de falar. E no fim é tudo nóis, tudo gente, nada diferente. Só o que nos separa é o preconceito.

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